HISTORIAL DA CAPELA DA NOSSA SENHORA DA AJUDA - MADEIRA

Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Morgados dos Piornais na Ilha da Madeira

Maria Favila Vieira da Cunha Paredes (arquivista, Arquivo Regional da Madeira); 
Fernão Manuel Favila Vieira; Maria João Pereira da Silva Favila  Vieira

1.Instituições vinculares: morgados e capelas

A longevidade das instituições vinculares e a diversidade de opiniões a respeito do tema tornam apelativo o seu estudo.
O Integralista Lusitano Xavier Cordeiro via na vinculação da Terra à Família elemento estruturante da Pátria Portuguesa, a redescobrir em ordem à reorganização e à coesão moral da Família.
O historiador madeirense Padre Fernando Augusto da Silva observa que foram inúmeros na Madeira os morgados e capelas, contrastando a tola vaidade de muitos instituidores com a vida de privações de muitos morgados.
Em O morgadio em Portugal nos séculos XIV-XV, Maria de Lurdes Rosa distancia-se do preconceito iluminista e liberal relativamente ao sistema de morgadio. Ela convida a investigar o tema “na esfera interna das famílias (…) tentando alargar o dossier da vida de cada morgadio e personagens a ele ligados”: alerta assim para a importância dos arquivos privados e a necessidade de prestar maior atenção a estas fontes. Em resposta ao repto, falaremos de uma capela madeirense, na posse da mesma família desde a sua fundação no século XVI.
Agradecemos à Diocese do Funchal, na pessoa do Reverendíssimo Bispo Senhor D. António Carrilho, e na do Reverendíssimo Bispo Emérito Senhor Dom Teodoro de Faria, a possibilidade de consultar os decretos prelatícios citados neste trabalho e a de transcrever os autos de fundação da capela, bem como agradecemos a colaboração do genealogista Luis de Sousa Melo, antigo director do Arquivo Regional da Madeira, e a de Maria de Lurdes Rosa, Directora do Instituto de Estudos Medievais – FCSH/UNL, cuja tese permitiu fundamentar uma interpretação da história da capela e seus administradores.

2. Ascendência e família próxima de António Favila, cavaleiro da casa d`El Rei, fundador da capela de Nossa Senhora da Ajuda e do morgadio dos Piornais

Alguns autores atribuem aos Favila da Madeira uma ascendência ilustre, ligando-os aos condes Favila e D. Pelágio das Astúrias. Os Favila teriam apoiado as pretensões de D. Afonso V ao trono de Castela. Um João Favila veio para Portugal por diferenças que tivera nesse reino e casou com Beatriz Coelho, dama da Casa Real. Seus filhos Fernão e João, criados na Madeira, combateram em África e foram produtores de açúcar – “ouro branco” da Madeira nos séculos XV e XVI. “Homens bons” do concelho do Funchal, os Favila serviram diversos cargos entre 1508 e 1547. Fernão Favila casou com Beatriz Pires: tiveram Francisco Favila, comendador da Ordem de Cristo, sepultado com seus pais no convento de São Francisco do Funchal, e ainda António Favila, que casou com Maria de Vasconcelos, bisneta de João Gonçalves Zargo, e com ela fundou a capela de N.ª Sr.ª da Ajuda.
Os fundadores da capela da Ajuda foram pais de Fernão Favila de Vasconcelos, Maria Favila, Duarte Mendes de Vasconcelos e Inês Moniz. Em testamento de 1587, D. Inês instituiu morgado com sucessão na linha feminina a favor das filhas de seu irmão Fernão, 1.º morgado dos Piornais; ofertou 15 000 reis para a primeira peça que os jesuítas adquirissem para a igreja do seu colégio.

3. Fundação da capela de Nossa Senhora da Ajuda (1540-1541) e padroado dos fundadores

A fundação da capela consta do testamento de António Favila e de sua mulher, resumido nos respectivos termos de óbito e na escritura de dote que fizeram para sustento do culto e reparo do templo.
O casal instituiu morgadio na linha varonil, com capela de três missas semanais.
Os autos ordenados pelo arcebispo D. Martinho de Portugal revelam a devoção mariana dos fundadores e as cautelas prévias à erecção de uma igreja particular. A ermida primitiva, de pedra e cal, tinha uma porta de cantaria protegida por um alpendre forrado de madeira de cedro e um pequeno campanário. O retábulo de Nossa Senhora da Ajuda e o crucifixo dourado, duas peças flamengas, desapareceram às mãos dos huguenotes que vandalizaram a capela em 1566.
A carta de confirmação de padroado a favor de António Favila e seus herdeiros administradores do vínculo autorizou o culto público na nova igreja, que proporcionava aos colonos das fazendas do morgadio, distantes do Funchal, o socorro da religião, mas ressalvando o direito da matriz e sob condição de obediência às leis do bispado.

3.1. Natureza e significado do vínculo

Do testamento resulta que os fundadores projectam na Eternidade a sua linhagem, celebrando a Fé, que transfigura o culto dos mortos em Comunhão dos Santos. O dever de sufragar os antepassados justifica a concentração de património nas mãos do morgado, que herda as terças de seus pais, sob condição de anexar, por sua vez, as suas terças ao morgadio. Parte substancial da herança destina-se, assim, a manter a capela.

3.2. Ampliação do vínculo

Dois filhos dos fundadores, Maria Favila e Duarte Mendes de Vasconcelos morreram novos, instituindo cada qual capela própria, que agregaram à de seus pais.
Duarte (testamento de 23.12.1556) fundiu os encargos das três capelas, impondo como único encargo do vínculo reformado uma missa quotidiana. Nomeou administrador seu irmão Fernão Favila de Vasconcelos, 1.º morgado dos Piornais.

4. Luzes e sombras da administração do vínculo

Referirei muito resumidamente alguns aspectos e episódios marcantes da administração da capela, luzes e sombras na vida dos sucessivos morgados, que enfrentaram sérios desafios, sobretudo nos séculos XVII a XIX.

4.1. Nossa Senhora da Ajuda, protectora dos padres jesuítas?

     Em 1570, por haver peste em Lisboa, os jesuítas que de lá vieram instalar o seu colégio ficaram fora do Funchal, em casas de Fernão Favila contíguas à capela da Ajuda.
    Facto interessante, os jesuítas dedicaram à Senhora da Ajuda a primeira igreja que edificaram na Baía, Brasil, e outra, imponente, em Goa.

4.2. Condenação e defesa do 1.º e do 2.º morgados dos Piornais no Juizo do Resíduo secular

1601 inaugurou uma grave crise do morgadio: por 260 000 reis de missas caídas, o Juízo do Resíduo secular apreendeu a produção de açúcar do 1.º morgado. A sua morte, nesse mesmo ano, gerou divisões entre os seus herdeiros. No processo de tomada de contas da capela, a defesa do 2.º morgado, condenado por sua vez em 1615, expõe as limitações da solidariedade familiar imposta pelo sistema de morgadio. Fernão Favila de Vasconcelos “o Moço” apontou como co-responsáveis pela dívida da capela seus tios, em especial Diogo de Bettencourt Favila, que encabeçara temporariamente o morgadio.
Empossado por decisão judicial em 1610, o 2.º morgado provou que o morgado “Velho” seu avô, homem rico e consciencioso, sustentara capelão próprio e prestava contas da capela no Juizo Eclesiástico; justificou a falta de quitações de missas provando o desmembramento e a perda de papéis do cartório do escrivão eclesiástico.
Por fim, alegou que o ónus da capela não podia exceder os 7000 reis fixados no testamento de Duarte Mendes de Vasconcelos, esmola já excessiva visto o rendimento do morgadio. Uma sentença de 12 de Setembro de 1628 desobrigou o 2.º morgado de uma dívida de perto de 900 mil reis.

4.3. O perdido “Livro do Morgadio” do capitão Pedro da Silva Favila de Vasconcelos

O 2.º morgado não teve filhos; sucedeu-lhe um sobrinho, o capitão Pedro da Silva Favila de Vasconcelos, filho segundo de Martim da Silva Favila.
Este 3.º morgado foi provedor da Misericórdia do Funchal, vereador da Câmara e juiz de fora. Em 1639 compareceu pela primeira vez perante o escrivão do Resíduo secular. Um libelo do arquivo da Familia Torre Bela refere o seu Livro do Morgadio, denso tombo de 200 folhas contendo uma petição do morgado para tirar certidão dos testamentos, inventários, partilhas e outros papéis da instituição do morgadio. Era um autêntico arquivo do morgadio, que fundamentava a chefia da linhagem, a posse e a boa administração dos bens vinculados.
Administrador cumpridor entre 1639 e 1654, o 3.º morgado foi condenado em 1682 por 179000 reis de missas caídas. A partir de então, a administração do morgadio entrou em défice crónico.

4.4. Apertos de uma administração em défice crónico:a capela, causa da penúria dos morgados?

António da Silva Favila de Vasconcelos, 4.º morgado dos Piornais, sucedeu a seu pai como capitão-cabo deste distrito. Entre 1686 e 1714, foi coronel da praia, responsável por cerca de 80 armas.
Em 1705 foi condenado em 298000 reis de missas caídas até 1704; ele e seus sucessores arrastaram por longos anos uma angustiosa situação de insolvência. Entre 1720 e 1797, foram tomadas contas aos arrematantes das novidades das fazendas do morgadio, foi sucessivamente apreendida a produção das fazendas, apesar de em 1765 o morgado ter provado que pagara os encargos da capela até 1736. Em 1798, pede que lhe sejam perdoadas as dívidas contraídas por seu pai, que vivera da caridade de parentes; alega nada ter herdado por não existirem bens livres.
Os morgados sobreviviam a duras penas, mas batiam-se e negociavam em juízo para reaver as suas rendas ou parte delas, para reparar a capela e sustentar a sua família.

4.5. Primeira interdição da capela (1791)

Em 1791 D. José da Costa Torres interditou a capela da Ajuda em ruínas. Graças a esta provisão, parte dos rendimentos sequestrados foi alocada à reparação da capela. Data desta época a aquisição do Cristo indo-português de marfim e da pintura da Sagrada Família do artista madeirense Nicolau Ferreira Duarte existentes na capela.

4.6. Breve de componenda de missas a favor de António José da Silva Favila

Um breve da Santa Sé de 12 de Junho de 1798 absolveu o 6.º morgado dos encargos em dívida: mais de 300 missas rezadas a 30 festas com sermões. Em defesa dos seus antecessores, ele alegava ser difícil achar quem celebrasse na capela dos Piornais, por ficar longe e a esmola ser pequena.
A pensão da capela foi reduzida a uma missa anual com esmola de 2700 reis.

5. Sobrevivência da mentalidade subjacente às instituições vinculares, após a abolição dos morgados (decreto de 19-05-1863)

Dois episódios da história dos Favila da Madeira ilustram a sobrevivência da mentalidade de morgado após a extinção legal dos morgadios.

5.1. O testamento do último Morgado Favila: legado a favor do Conselheiro Dr. Manuel José Vieira e re-fundação da linhagem

António João da Silva Bettencourt Favila, 8.º morgado dos Piornais, morreu a 18 de Abril de 1876, sem filhos.
Em testamento de 4 de Maio de 1874, contempla com legados generosos diversos parentes, a quem pede que usem o nome “Favila”, mas elege seu herdeiro universal um amigo: o advogado Doutor Manuel José Vieira, marido de sua prima D. Filomena de Bianchi Perestrelo da Câmara.
Os termos do testamento conferem extraordinário significado simbólico a esta decisão. Exaltam simultâneamente o nobre sentimento da amizade e as virtudes que legitimam a chefia de uma familia - porque o herdeiro escolhido, chefe do Partido Progressista na Madeira, gozava de consideração generalizada, pelo seu valor pessoal e desinteressada dedicação à causa pública: o legado evidencia exemplarmente a concepção aristocrática da relação entre autoridade e fortuna por um lado, virtude e serviço por outro. Mais: de forma premonitória, o testador adopta o filho por nascer do seu herdeiro. Assegurando assim uma posteridade à linhagem de que ele era o último representante directo, transforma a sua morte em ressurgimento: não só os numerosos descendentes do Conselheiro Vieira actualizaram o uso do nome Favila, como alguns se destacaram a exemplo de seu avô no campo da política ou da intervenção social: o Dr. Fernão Henriques Perestrelo Favila Vieira, delegado-organizador do Movimento Nacional-Sindicalista da Madeira, presidente de diversas associações agrícolas e defensor denodado dos interesses dos produtores madeirenses, o Dr. Álvaro Henriques Perestrelo Favila Vieira, governador civil substituto do Funchal (1930-1934), deputado à Assembleia Nacional na I, II, III e IV legislaturas, D. Berta Luísa Perestrelo Vieira Pereira da Silva, fundadora da obra sócio-caritativa Abrigo de N.ª Sr.ª de Fátima.

5.2. Segunda interdição da capela de Nossa Senhora da Ajuda (1916)

Aquando da visita pastoral à freguesia de São Martinho, o proprietário Manuel José Perestrelo Favila Vieira recusou patenteá-la para esse fim, tendo o bispo D. António Manuel Pereira Ribeiro proibido o culto na capela, até que fosse canonicamente visitada.
O visado publicou um opúsculo, explicando as suas razões: contesta a oposição do vigário capitular à realização de exéquias solenes do Conselheiro Manuel José Vieira, menciona diferenças políticas entre o bispo e o Conselheiro Vieira e seu genro o deputado Pereira, bem como divergências quanto ao provimento da capelania. Poucos meses depois, tendo cessado a causa que motivara o interdito, a capela foi devolvida ao culto.
A falta cometida por Manuel José Perestrelo Favila Vieira no plano disciplinar e no da Fé não oculta que se tratava para ele de uma questão de honra. Relacionava a solenidade da cerimónia, o espaço sacro familiar e o mérito de seu pai. Fiel à memória deste e do morgado Favila, assumia-se como representante do passado, da projecção social e do capital simbólico de um clã familiar. Por isso mesmo, vender a capela, jazigo dos fundadores e dos primeiros morgados, parecia-lhe “solução inaceitável” para o conflito.

6. Conclusão

O morgadio dos Piornais foi para os seus administradores mais causa de trabalhos e aflições do que fonte de prosperidade, embora fosse importante, como se deduz do facto de não ter sido abrangido pela lei de 09-09-1769, que suprimiu os pequenos morgadios.
Adivinha-se uma relação entre a derrapagem das contas da capela e o declínio da cultura sacarina, que Manuel Cayola Zagalo prova estar extinta em 1686 e foi substituída pela cultura da vinha, menos rendosa para os naturais da Ilha.
George Marcus e Diana Hill (seminário A Nobreza Portuguesa Contemporânea e o contexto da Nobreza Europeia no Palácio Fronteira, em 13.01.2001) afirmam:“devemos pensar a tradição como algo que é reinterpretado e recriado em cada geração. Se é verdade que, pela sua própria natureza, a tradição aparenta ser (…) conservadora em relação às mutações da sociedade, na realidade, ela envolve o exercício de escolhas constantemente renovadas cada vez que é necessário aplicá-la a uma situação nova, relativa à formação da identidade de uma pessoa ou família nobre (…) A condição do nobre (…) implica o exercício de uma certa iniciativa dentro de um contexto de privilégio”.  
Assim fizeram os morgados que evocámos, em particular o último, mas também o seu herdeiro universal e seus descendentes, nomeadamente seus filhos, assim fazem os actuais proprietários da capela. Graças ao empenho destes, bem como ao devotado esforço de diversas pessoas e famílias, e ao interesse das autoridades eclesiásticas, a capela de Nossa Senhora da Ajuda mantém-se não apenas como oratório, encargo e devoção familiares, mas como centro com dimensão e vitalidade populares, hoje animado sobrenaturalmente pela Presença Eucarística.

Sem comentários:

Enviar um comentário